Atenção para quem vai e para quem fica

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5 de janeiro de 2024

Atenção para quem vai e para quem fica

Saúde Brasil ainda engatinha nos cuidados paliativos, que está ganhando política nacional.
Por Danilo Thomaz, para o Valor, do Rio

Um evento familiar marcou a vida do enfermeiro Alexandre Ernesto da Silva, de 46 anos. Uma tia, que estava com câncer no fígado, foi enviada pelos médicos para poder morrer em casa. Era 1995, Silva estava com 18 anos e apenas começando seus estudos na área da enfermagem. O sofrimento que testemunhou marcou o jovem para sempre.

“Não tem que dar alta para morrer em casa, tem que dar alta para viver em casa”, conta Silva, que vive entre Divinópolis (MG) e o Rio de Janeiro. O enfermeiro e especialista em gestão pública na saúde é criador das Comunidades Compassivas, projeto voluntário dedicado aos cuidados paliativos nas comunidades do Vidigal e da Rocinha, ambas na zona sul do Rio.

Ao cuidar da tia, que morreu, Silva conheceu a necessidade desse tipo de cuidado. “Muita gente pensa como cuidado de final de vida. Não necessariamente precisa ser final de vida”, explica o médico Rodrigo Kappel Castilho, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). “Os cuidados paliativos têm por princípio prevenir e controlar sintomas físicos como a dor, sintomas espirituais, psicológicos e sócio-familiares.”

Os cuidados paliativos são a combinação de uma série de estratégias — medicamentosas, fisioterápicas, psicológicas e outras — conforme a necessidade de cada paciente para aliviar as dores, sintomas e incômodos causados em decorrência de determinada enfermidade. Não há uma estratégia pré-estabelecida.

As recomendações referentes aos cuidados paliativos são feitas de acordo com o estado de saúde do paciente e suas enfermidades. Em geral, esse tipo de estratégia é adotada para o caso de doenças crônicas, como o diabetes ou problemas renais, ou doenças como o câncer.

Embora os cuidados paliativos sejam mais associados a elas, não é preciso que estejam circunscritos a enfermidades ou estágios mais graves, podendo ser adotados sempre que necessários e recomendados por um ou mais profissionais. “O cuidado paliativo necessariamente tem que ser multidisciplinar”, explica Castilho.

Segundo o “Atlas Global de Cuidados Paliativos”, divulgado em outubro pela Organização Mundial da Saúde (OMS), somente 2% dos aproximadamente 60 milhões de adultos e crianças que necessitam desse tipo de assistência no mundo a recebem. Com base nesses dados, estima-se que cerca de 18 milhões de pessoas ficam sem acesso aos cuidados paliativos. A OMS vem dando mais atenção ao tema desde 2018.

Os dados levaram o Ministério da Saúde a adotar uma nova política sobre o tema, com a adoção da Política Nacional de Cuidados Paliativos. Anunciada em14dedezembro,aação será estruturada em toda a rede pública do país. Segundo o “Atlas”, a maior oferta de serviços em cuidados paliativos está no SUS, com 123 (52,5%) unidades, além de 36 (15,3%) serviços instalados em instituições de atendimento público e privado,e75 (32%) serviços em hospitais privados. A Associação Europeia de Cuidados Paliativos recomenda dois serviços especializados a cada 100 mil habitantes.

Uma vez formado em enfermagem, Silva fez sua pós-graduação em gestão pública da saúde na UFRJ, universidade que é referência no assunto. “Continuei preocupado com a questão dos cuidados paliativos. Fui fazer o mestrado na temática dos cuidados paliativos.”

À época, o Rio vivia a implantação das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) em morros como o Dona Marta, em Botafogo, zona sul da cidade. Nessa mesma época, foram implementadas as clínicas da família pelo prefeito Eduardo Paes, em sua primeira gestão. “A questão da favela já me impactava muito”, conta.

Silva foi conhecer a realidade da saúde carioca. Visitando as favelas, ouvia recomendações como “abaixa que é perigoso ”e respondia: “Esse povo é meu povo, não vou abaixar”.

Seu périplo se estendeu à região central do Rio. Topou com a Casa Rosa, na Lapa, um espaço administrado por Luana Muniz, uma mulher trans, ex-profissional do sexo, que oferecia cuidados de saúde a 19 pessoas necessitadas. Lá, conheceu a vereadora Marielle Franco (1979-2018),que lhe fez o seguinte convite: “Você não quer conhecer a Maré? O que mais tem lá é isso”.

Silva passou oito meses frequentando o Complexo da Maré, na zona norte do Rio. À época, por volta de 2010, a região, que abriga uma série de favelas, já começava a viver a disputa entre facções do tráfico e milícias que a marca hoje.

Na sequência, começou a frequentar a favela do Vidigal, na zona sul carioca. “Comecei a montar uma rede de amigos que ajudasse a cuidar das pessoas”, conta. “Continuei vindo aqui pro Rio uma vez por mês e agregando e cuidando de pessoas em fim de vida.”

Foi a pedra fundamental das Comunidades Compassivas, um grupo que estruturou em 2018 para oferecer cuidados paliativos a pessoas nas favelas do Vidigal e da Rocinha, a maior do Rio.

As Comunidades Compassivas existem no mundo inteiro, mas só agora vêm sendo implementadas no Brasil e farão parte da Política Nacional do Ministério da Saúde. Cada uma tem seu próprio modo de funcionamento.

No caso das comunidades criadas e geridas por Silva, trata-se de um trabalho realizado em diálogo e complemento com o SUS, por meio das clínicas da família. Tanto essas quanto os voluntários do grupo — que fazem parte das comunidades atendidas — indicam o paciente para ser atendido pela Comunidade Compassiva.

É realizada, então, uma análise médica do paciente para sua aprovação. Uma vez aprovado, o paciente é alocado em um dos subgrupos dentro de sua comunidade, Vidigal ou Rocinha. São quatro sub grupos nesta e três no Vidigal.

Os pacientes têm atendimento individualizado, de acordo com seu diagnóstico. O atendimento se estende às necessidades das famílias, como, por exemplo, no caso de necessidade de apoio psicológico ou mesmo materiais, como fraldas, roupas e mantimentos.

O voluntário da comunidade, que pode acompanhar até quatro pacientes, faz o acompanhamento cotidiano enquanto o médico realiza o mensal. “Uma vez por mês e levem até o morro, verifica se ele [o paciente] está integrado à rede pública de saúde. A gente faz um trabalho complementar”, conta Silva. “O grande motor é o voluntário-morador.”

Nesse ínterim, qualquer necessidade ou urgência é comunicada pelo voluntário via WhatsApp. Deste modo, o médico responsável faz a devida indicação de medicamento, por exemplo, ou a recomendação para o encaminhamento à clínica da família.

Além do médico, o grupo conta com enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais e psicólogos, que operam praticamente online, além de doadores para necessidades como fraldas, alimentos, roupas de cama e afins. O grupo é mantido exclusivamente por seus doadores, sem a ajuda de nenhum patrocínio.

A iniciativa tem inspirado outras pelo Brasil, como em São Paulo, na favela de Heliópolis, inaugurada recentemente, em Belo Horizonte e em Goiânia, onde um coletivo já atua há mais de um ano nas regiões periféricas da capital de Goiás.

Erika Aguiar Lara Pereira, de 51 anos, é médica de família e odontóloga em comunidade, com atuação em cuidados paliativos. “Conheci cuidados paliativos até antes de fazer a residência. Fiz um curso de cuidados paliativos e me encantei pelo tema. Fui fazer uma residência que tinha muita interface com os cuidados paliativos”, conta.

Em agosto de 2022, inspirada na experiência carioca, criou a Goiânia Compassiva, com atuação na região noroeste da cidade, commaisde200milhabitantesemsituaçãosocial crítica.

A primeira fase do projeto, de agosto a fevereiro de 2023, se pautou no treinamento dos voluntários. Os atendimentos começaram a partir daí. Hoje, a equipe se divide entre voluntários profissionais e locais, totalizando 30 pessoas. “A gente divide esses voluntários em equipes para darem conta dos pacientes que precisam de assistência. Temos tido a experiência de fazer cerca de três a quatro visitas”, explica Pereira.

O Goiânia Compassiva atende 13 pessoas “de uma forma individualizada, acaba que a gente atende um número muito maior”, uma vez que as famílias e as comunidades acabam sendo atendidas, direta e indiretamente. O grupo realizará em breve um novo mutirão para trazer novos pacientes.

De acordo com o presidente da Academia Nacional dos Cuidados Paliativos, Rodrigo Kappel Castilho, os cuidados paliativos estão hoje “mais disseminados nos serviços públicos ou que atendem em públicos e privados” e um terço dos pacientes tem atendimento domiciliar. Isso não significa, porém, que o país esteja em uma boa situação nesse assunto. “Toda rede de atenção básica é muito escassa”, afirma.

Segundo dados do estudo “Cross Country Comparison of Expert Assessments of the Quality of Death and Dying 2021” publicado no “Journal of Pain and Symptom Managment”, o país é o 79o, entre 81 nações, em qualidade de vida de pacientes à beira da morte. Perde apenas para o Líbano e o Paraguai, o último colocado.

Segundo a ANCP, a Inglaterra, primeira colocada em qualidade de vida de pessoas à beira da morte, conta com 1.700 hospitais com 220 unidades de internação para adultos, 33 unidades pediátricas e 358 serviços de atendimento domiciliar.

No caso brasileiro, há uma série de iniciativas em funcionamento, além das Comunidades Compassivas. Entre eles destacam-se o pioneirismo do Instituto Nacional do Câncer (Inca), ao lançar, em 1998, o Hospital Unidade IV, dedicado aos cuidados paliativos. Em 2002, o Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo inaugurou uma enfermaria dedicada à especialidade, seguido pelo Hospital do Servidor Público Municipal, dois anos depois.

Uma questão grave, segundo Castilho, é que a tecnologia vem avançando, mas a pessoa humana vem sendo deixada de lado pela medicina. O que é um problema sério num tipo de tratamento, em si multidisciplinar. “A pessoa vem sendo esquecida. E é um cuidado muito individualizado. Quem está em final de vida é pouco valorizado. Pela dificuldade do médico em lidar com a morte, coloca o paciente na  UTI”, afirma Castilho.

Ajudar a lidar com a perda e elaborar o luto também faz parte da realidade de quem atua nessa área, conta Silva. “A dor de quem fica normalmente é maior do que de quem vai. No final, não tem vitória, tem perda.” Mas há sempre um recomeço, um novo paciente, uma nova família precisando aliviar sua dor. E uma comunidade, pronta a ajudá-la.


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