Blog “No final do corredor” traz experiências em Cuidados Paliativos

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12 de setembro de 2015

Blog “No final do corredor” traz experiências em Cuidados Paliativos

Ana Lúcia Coradazzi, oncologista clínica e coordenadora da Unidade de Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, em Jaú, interior de São Paulo, deu início este ano ao blog “No final do corredor“, onde relata suas experiências com Cuidados Paliativos.

“Comecei a pensar em alguma forma de explicar o quanto pode ser gratificante trabalhar da forma proposta em Cuidados Paliativos. Eu queria que as pessoas enxergassem os pacientes e suas famílias pelos nossos olhos: pessoas com histórias de vida únicas, com sentimentos surpreendentes, com todas as angústias e encantos que qualquer ser humano tem, e que ficam tão expostas nessa fase da vida”, conta Ana Lúcia.

O blog ganha repercussão numa época em que o final de vida e as questões que o envolvem passam a ser mais discutidos pela sociedade, deixando a categoria de tabu. “No final do corredor” tornou-se um espaço virtual onde pacientes e familiares podem compartilhar suas experiências, e profissionais de saúde podem entender melhor o que envolve o trabalho em Cuidados Paliativos, que muitos consideram triste.

Ana comemora a repercussão com o público, tanto leigo quanto especializado. “Acredito que a lição [do blog] é bastante simples: somos todos iguais, e também somos todos únicos. O respeito profundo e incondicional a essa verdade é o que nos torna pessoas melhores e mais capazes de manter relacionamentos mais plenos e honestos, sejam eles profissionais, familiares ou de qualquer outra natureza”, afirma.

Na entrevista a seguir Ana fala sobre sua experiência profissional, a criação do blog e o que pretende com esse espaço tão especial. Confira a entrevista completa:

Como você iniciou seu trabalho em Cuidados Paliativos?

A busca pelos Cuidados Paliativos se iniciou devido a uma grande angústia pessoal ao lidar com pacientes oncológicos, em especial quando estavam vivendo seus últimos dias. Durante a residência médica em Oncologia Clínica não recebemos formação adequada para lidar com esses pacientes, e ficamos insistindo em tratamentos e propostas que não têm cabimento. A gota d’água foi uma paciente de cerca de 40 anos que conheci durante a residência. Ela tinha um câncer avançado com grave comprometimento pulmonar, e estava internada em insuficiência respiratória. Eu passava visita todos os dias e, perdida na minha própria impotência, propunha novas estratégias o tempo todo: um exame para fazer, uma quimioterapia “adaptada”, um antibiótico, ou qualquer outra coisa. Um dia, assim que comecei meu discurso sobre a programação da vez, ela me interrompeu levantando a mão direita, e disse com a fala entrecortada: “Chega. Me deixa em paz.” Nesse momento eu entendi o quanto a minha ignorância estava aumentando o sofrimento dela. Isso mudou profundamente a minha vida. Conheci os Cuidados Paliativos pouco depois, através de uma colega, e me especializei na área. Passei a inserir essa forma de abordagem terapêutica em minha prática como oncologista, o que transformou não só minha vida profissional como minha vida pessoal também.

Quando e de onde veio a ideia de criar um blog sobre o tema?

Com a criação da Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos em nosso hospital, há 7 anos, nosso trabalho começou a ganhar evidência, e os colegas começaram a perguntar por que tínhamos escolhido uma área tão triste para trabalhar. As dúvidas eram sempre basicamente as mesmas: Como você aguenta ver gente morrendo todo dia? Como você consegue dizer a alguém que ele vai morrer de câncer? Como você suporta assistir tanto sofrimento? É uma área que causa grande curiosidade nas pessoas, sejam da área da saúde ou não.

Comecei então a pensar em alguma forma de explicar o quanto pode ser gratificante trabalhar da forma proposta em Cuidados Paliativos. Eu queria que as pessoas enxergassem os pacientes e suas famílias pelos nossos olhos: pessoas com histórias de vida únicas, com sentimentos surpreendentes, com todas as angústias e encantos que qualquer ser humano tem, e que ficam tão expostas nessa fase da vida. Nós nos sentimos extremamente privilegiados, pois assistimos de perto ao que há de mais sagrado em um ser humano. Foi então que pensei num blog, há alguns meses, no qual eu pudesse mostrar a visão da equipe de saúde, que é tão pouco divulgada.

O nome do blog veio da área física que ocupávamos na época, que ficava literalmente no final do corredor. Muitas unidades de Cuidados Paliativos ficam em locais afastados, como o último andar do hospital ou o final de alguma ala. Ainda se tem muito preconceito a respeito do que acontece lá, e as pessoas tendem a não querer passar nem pela porta. No início, tínhamos famílias que faziam um escândalo ao saber que o paciente seria transferido “lá para o final do corredor”. Perguntavam por que o estavam mandando para morrer mais rápido, ou coisas assim. Decidimos colocar esse nome justamente para ajudar a desmistificar esse tipo de ideia, mostrando que é um lugar onde se faz exatamente o oposto: ajudamos os pacientes e suas famílias a viverem da melhor forma possível pelo tempo que for viável.

Como é a repercussão do público?

A repercussão do público foi uma surpresa fantástica. As pessoas começaram a compartilhar suas próprias histórias, emocionavam-se com os posts, mostravam-se interessadas em falar sobre a morte e sobre sua necessidade de uma relação mais próxima com as equipes de saúde. Há um grande número de acessos por pacientes, familiares e profissionais da saúde, de várias áreas. Enquanto os pacientes e familiares buscam principalmente o compartilhamento de experiências, os profissionais da saúde procuram aumentar seus conhecimentos na área, perguntando sobre cursos, conceitos, etc. Procuro responder pessoalmente a cada comentário, é um aprendizado único para mim.

Como você seleciona os temas abordados?

A inspiração para os posts é totalmente pessoal. Procuro garantir que os posts sejam um reflexo de experiências reais que possam ajudar as pessoas que o acessam, e não apenas uma coletânea de conceitos. Se vivencio uma experiência especial com um paciente, trabalho em sua história até o ponto que ela realmente possa acrescentar algo à vida de quem a lê. Os artigos da mídia também são selecionados com base nesses critérios. O objetivo é sempre enriquecer a vida das pessoas e apagar aos poucos os preconceitos em torno dos Cuidados Paliativos.

Outro objetivo bastante claro dos posts é a melhoria da qualidade das relações entre médicos, pacientes e familiares. Nos últimos anos houve um grande afastamento e até distorção desse relacionamento, que é tão único na vida de todos os envolvidos. Criamos a ilusão de que a tecnologia nos tornaria imortais e o médico poderia ser simplesmente um técnico responsável por administrar tais tecnologias aos pacientes. Estamos descobrindo que isso é pouco. A tecnologia jamais curará todo mundo e, mesmo que cure as doenças físicas, não substitui a necessidade que temos de sermos cuidados, em seu mais amplo sentido. Mostrar ao público leigo que profissionais da saúde compartilham de seus medos, angústias e dúvidas é uma estratégia poderosa para derrubar essas barreiras.

Você acredita que hoje existe uma abertura maior para se abordar o final de vida? Até a Folha de S. Paulo hoje tem espaço cativo onde se debate a morte (o blog Morte Sem Tabu, de Camila Appel), algo que seria impensável há apenas alguns anos.

Não tenho dúvidas. A ideia de que as pessoas não querem falar sobre a morte é ultrapassada e preconceituosa. O que vejo todos os dias  são pessoas extremamente interessadas na morte e em tudo o que se relaciona a ela. Estão especialmente interessadas em garantir um final de vida digno e sem sofrimento, e procuram informações que lhes permitam isso. Médicos que se recusam a lidar com essa situação são muitas vezes considerados desumanos e frequentemente causam uma sensação palpável de abandono em seus pacientes.

A compreensão de que a morte é uma fase normal das nossas vidas (e não um desfecho a ser evitado) vem tomando força a cada dia. Já existe um enorme número de grupos formados para discutir esse tipo de tema, organizações voltadas para o suporte de pacientes graves e seus familiares e uma quantidade infinita de informações facilmente acessíveis. Vejo todo esse movimento como uma grande evolução cultural. Não há sentido em fingir que não morreremos. Negar a morte não vai evitar que ela aconteça. Vai apenas torná-la mais difícil.

O que falta para a adoção dos Cuidados Paliativos de uma maneira mais precoce na rotina dos pacientes que precisam deles?

Basicamente informação, tanto dos profissionais da saúde quanto da população em geral. Temos muitas condições favoráveis à boa prática dos Cuidados Paliativos no país, desde políticas públicas que favorecem sua execução até excelentes cursos de capacitação. Mas o preconceito ainda é uma barreira importante, e quando ele vem de um médico se torna ainda mais nocivo. É comum encontrarmos colegas que preconizam que a transferência de pacientes para as equipes de Paliativos deve ser feita quando eles já estão agônicos, para os quais a morte é questão de poucas horas. Esses mesmos colegas têm acesso fácil aos numerosos estudos que mostram claramente os benefícios do encaminhamento precoce aos Cuidados Paliativos, tanto em termos de tempo de vida quanto de qualidade de vida, mas mesmo assim não o fazem. Isso provavelmente é motivado por preconceito.

Além disso, eu não vejo Cuidados Paliativos como uma especialidade a ser praticada por uns poucos profissionais altamente qualificados. Acredito fortemente que a formação em suporte paliativo deve fazer parte da graduação médica e de enfermagem. Isso permitiria que os profissionais inserissem esse tipo de estratégia em sua prática médica, independentemente da especialidade que escolhessem. Eu mesma não me considero uma médica paliativista, e sim uma oncologista clínica que adota a estratégia de Cuidados Paliativos como parte do tratamento dos meus pacientes.

Ninguém precisa ser paliativista para tratar adequadamente a dor de seu paciente, ou para se comunicar com ele de forma adequada, por exemplo. Isso é prerrogativa de qualquer médico. Equipes de Paliativos deveriam ser necessárias apenas para situações mais complexas.

Qual a principal lição do seu blog?

Acredito que a lição é bastante simples: somos todos iguais, e também somos todos únicos. O respeito profundo e incondicional a essa verdade é o que nos torna pessoas melhores e mais capazes de manter relacionamentos mais plenos e honestos, sejam eles profissionais, familiares ou de qualquer outra natureza. Como diz a frase de Cora Coralina, que escolhemos para estampar o cabeçalho do blog: “Há muros que só a paciência derruba. E há pontes que só o carinho constrói.”


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